Comida de Funcionário

A transcrição a seguir é de um e-mail recebido em janeiro deste ano.

"Querida Josy,

Nem sei se você realmente lê os e-mails que recebe. De qualquer forma, estou lhe escrevendo para desabafar (talvez isso me deixe mais "leve"). Eu sei que você não é psicanalista mas certamente vai compreender minha inquietação.

Me formei em Gastronomia (assim como você) porque minha ligação com essa coisa de "memória gustativa" é muito forte (eu até choro se comer algo que me faça lembrar pessoas ou algum acontecimento da minha vida).

Quando decidi me inscrever na faculdade (muito cara, por sinal), minha mãe me disse que eu era maluca. "Onde já se viu? Gastar dinheiro pra sofrer numa cozinha quente feito o inferno, se cortar, se queimar e ainda ganhar pouco?". Eu ignorei, deixei a paixão falar mais alto e me graduei - aos trancos e barrancos, fazendo muita hora extra para poder pagar o curso e sempre ouvindo muita gente me perg
untar: "Culinária? Por que não uma faculdade 'de verdade', tipo Direito, Publicidade, Economia...?"

Já graduada, decidi que abandonaria meu antigo emprego (que por sinal, foi o que me permitiu pagar meu curso) e finalmente, trabalharia na "minha área".
Estagiei num lugar maravilhoso, onde ninguém reclamava de coisa alguma (pelo contrário, o pessoal fazia muita hora extra porque "pagam direitinho", porque recebiam alimentação de qualidade, participavam de uma confraternização bacana de fim de ano, com direito a levar a família...).
Lá eu aprendi muita coisa mas, lamentavelmente, meu contrato de estágio acabou justamente quando a demanda de trabalho despenca - de modo que não houve sequer a possibilidade de efetivação (por mais que tivessem gostado do meu trabalho).

Foi então que - eis o motivo do meu e-mail -, me deparei com o que pensei ser "a" minha chance de iniciar um bom currículo: fui chamada para uma entevista num restaurante que estava prestes a ser inaugurado em São Paulo (num dos bairros mais "gastronomicamente efervescentes" da capital).
Contratada como ajudante de cozinha (por o que eles chamam de "piso da categoria" - R$ 800,00), por não ter "experiência anterior na função" (registrada em CLT), fui feliz da vida para o restaurante (ainda de portas fechadas para o público) no meu 1º dia de trabalho. Decidi que eu daria o melhor de mim, construiria meu currículo ali e finalmente, poderia dizer: "trabalho fazendo o que gosto". Parecia algo tão bom, que eu ignorava o salário baixíssimo ("afinal, ainda terão as caixinhas dos clientes para 'engordar' esse salário", pensava).

Mal imaginava o que estava por vir.

O ambiente me parecia um tanto hostil: eu era a única mulher ali, no meio de homens que só sabiam dizer baixarias (o dia inteiro) - era como se eles estivessem num puteiro e eu, fosse uma das "operárias" (a questão era que eu estava vestida como eles, sempre quieta, impondo limites de "intimidade" e sendo vista como a "mal-comida", "mal-amada", "sapatão" por isso).
Mas essa era a menor das barreiras.

O dono do restaurante, conhecido como "Chef" Balofo (vou me referir a ele dessa maneira pois, ele é conhecido do público), na verdade não é chef de merda nenhuma. É "só" um milionário excêntrico, glutão, que viaja pelo mundo para "treinar o paladar" mas que tem alguém que "se suje de molho" por ele. Até aí, nada demais (afinal, tantos "chefs" são apenas uma marca e não sabem sequer elaborar um cardápio ou fazer uma simples ficha técnica).
O problema era o "escudeiro" (ou seria "lambe-botas" do tal "chef"), a quem nos bastidores chamávamos de "Lampião".

Lampião é um caboclo chucro, saído do agreste, "eternamente grato" ao "Chef" Balofo por tudo o que este havia feito em sua vida (pagou viagens a diversos países - lógico, alguém precisava sujar o dolmã e não seria o "Chef" que vai a programas de TV e aparece nas "revistas especializadas", o adestrou com muitos livros e revistas - assim se fez sua formação).
"Faculdade o cacete! Eu tenho 20 anos de cozinha, sei mais do qualquer filho da puta que se considere professor de gastronomia!" ele bradava - de propósito, para que eu ouvisse e me sentisse mal por ser graduada. Mas eu engolia aquilo pois sabia que era inveja, incapacidade.

Nesse restaurante eu era apenas uma executora. As receitas eram todas do Lampião (ou, das revistas e livros que ele tinha à sua disposição - ele não cria nada, não sabe nem "Pra que serve essas merdas de ficha técnica? Que viadagem!". E era uma pior que a outra (até os cozinheiros diziam: "Do restaurante de onde eu vim, não era assim não").
A cada dia, eu via meu potencial criativo sufocado. Eu não podia sequer propor um item a um cardápio que ainda nem existia. Ele, o Lampião, dizia que os funcionários deveriam era "agradecer" por estarem "aprendendo alguma coisa enquanto recebem salário" (oh, que salário!).

Eu não aprendi quase nada nesse lugar exceto uma coisa: Como não tratar as pessoas.

O assédio moral era constante: berros e mais berros ("Você é burro?", "Você é viado?" e outras pérolas daí para pior). O dono, "Chef" Balofo, sequer dizia "Bom dia" à 'peãozada', fazia questão de tudo, até de um vidro de azeite que estivesse fora do lugar. Só entrava na cozinha para gritar que nada prestava, que queria a massa igual à do restaurante X, o peixe igual ao Y, o risotto igual ao do Z. Eu concluí que o cardápio do restaurante dele seria nada mais que um plágio dos itens dos concorrentes (palmas para ele e para o Lampião, que se julga acima das instituições gastronômicas).

Eu jamais gostei de carne de porco e tive que me deparar com a tal "comida de funcionário": arroz, feijão e linguiça, da mais baratinha, lógico - até que acabasse um saco de sei lá quantos quilos (foram mais de 2 semanas comendo isso, todo dia). Certa vez, um rapaz estava refogando cubos de 3 tomates quando foi interrompido pelo som da "peixeira" do Lampião batendo na borda da panela lhe dizendo: "Só pra seu conhecimento, tomate não vai em comida de funcionário".

Aquilo ali me deixou estarrecida. 3 tomates na "comida de funcionário" deixariam o dono (que não se cansava de dizer que aquele empreendimento lhe custou "2 milhões de Reais") mais pobre?
E quaisquer aparas de vegetal, ou de carne (sim, aqueles nervos que dente nenhum é capaz de romper) eram destinadas à "comida de funcionário". Eu achava isso desumano.

E os banquinhos do jardim? Ai de quem ousasse repousar as nádegas neles - mesmo no horário de "almoço de funcionário". O dono fez um escândalo com um pobre coitado que não sabia que "o 'seu' Balofo gastou 2 mil Reais pra mandar fazer esses banquinhos". Teve que ouvir berros tão altos quanto um trovão.

O "Chef" Balofo sequer falava comigo para aprovar ou reprovar qualquer receita executada por mim. Era o Lampião quem ficava encarregado de dar o feedback (detalhe é que com os homens da cozinha ele, o Balofo, falava). O machismo, nítido ali, me irritava.

Todo dia eu presenciava abusos como este e chegava a achar que minha mãe estava certa: eu estava numa cozinha quante feito o inferno, me cortando, me queimando, ainda ganhando pouco e fazendo parte da cultura da "Casa Grande e Senzala". Não era certo ser tratada como lixo.

Saí desse inferno (que ainda nem inaugurou), sem nenhuma saudade e com uma certeza: Se boa parte dos clientes soubessem como estas pessoas - que preparam a comida, servem e lavam os pratos - são tratadas, certamente pensariam duas vezes antes de deixar seu dinheiro no bolso de um cara como o "Chef" Balofo.

Depois dessa experiência, ficaram alguns traumas: entrar ou não numa cozinha (a trabalho) novamente? Sair para jantar fora ou preparar alguma coisa e comer em casa mesmo?

Abraços,
Scarlett O'Hara*"

* O nome do remetente foi alterado (pois teme represálias que acarretem em dificuldades para conseguir outra colocação no mercado de trabalho).

É isso. Agora, tirem suas próprias conclusões, meus caros.




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